quinta-feira, 1 de maio de 2008

Entrevista à Tião Rocha

Para educador, escola formal não serve para educar

Por Uirá Machado, Coordenador de Artigos e Eventos da Folha de S.Paulo - Publicado na Folha Online


À frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984, Rocha sempre persegue “maneiras diferentes e inovadoras” de educar, alfabetizar, gerar renda. Ele distingue educação de escolarização e busca um sonho: escolas que sejam tão boas que professores e alunos queiram freqüentá-las aos sábados, domingos e feriados. “Se ninguém fez, é possível”, diz.


Folha - Toda a sua história como educador é feita do lado de fora das escolas convencionais. Qual é o seu problema com a escola formal? 

Tião Rocha - Se eu tivesse um analista, isso seria um prato cheio para ele. Comecei a ter problemas com a escola desde que entrei, aos sete anos. Logo no primeiro dia de aula, no Grupo Escolar Sandoval de Azevedo, Belo Horizonte, a professora Maria Luiz Travassos nos levou para a sala de leitura, pegou um livro, “As Mais Belas Histórias”, da dona Lúcia [Monteiro] Casasanta, e começou a ler: “Era uma vez um lugar muito distante, onde havia um rei e uma rainha (…)”. Eu levantei a mão e falei: “Professora, eu tenho uma tia que é rainha”. Ela desconversou, pediu para eu ficar quieto. Ela prosseguiu a história. Depois que a interrompi duas ou três vezes, ela me mandou calar a boca e ir falar com a diretora, dona Ondina Aparecida Nobre. Ela me deu um tranco, perguntou se eu queria ser expulso. A partir daí, eu sempre inventava coisa para matar a aula. Nunca tive uma escola boa. Nunca tive prazer na escola, mas sempre quis aprender. Quando fui para a faculdade, estudei história e antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era rainha do congado. Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de que, se eu achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um reprodutor da mesma chatice. 

Folha - E você conseguiu mudar? 
Rocha - Não. Criava jeitos diferentes de trabalhar com os alunos, inovava, mas, no fim, era uma experiência muito reformista. Ela começou a ser transformadora quando aconteceu o fato com o Álvaro, minha primeira grande perda [o garoto, excelente aluno, se suicidou]. Aí eu falei: “Opa! Não adianta querer que os meninos aprendam história se eu não consigo aprender a história da vida deles”. Então comecei a deixar de lado não só a forma mas também o conteúdo. Por exemplo, pedia aos alunos para pesquisarem em casa: sobre cantiga de ninar, expressões populares, jogos etc. Um pai chegou para mim e disse: “Vim te agradecer, porque eu tinha um problema de relacionamento com meu filho, mas agora ele apareceu querendo saber sobre as brincadeiras de quando eu era criança e começamos a conversar, a brincar”. Eu nem sabia que aquele negócio estava ajudando a aproximar pais e filhos. Aí eu fui me libertando dos conteúdos cheirando a mofo e comecei a ver que estava partindo para uma outra coisa. Esse processo foi evoluindo na reflexão sobre o que é deixar de ser professor e virar educador. O professor ensina, o educador aprende. 

Folha - E então o sr. começou seus projetos fora da escola, debaixo do pé de manga. Mas o sr. acha que a escola formal serve para alguma coisa? 

Rocha - Ela serve para escolarizar. Ela dá um determinado tipo de informação e de conhecimento que atende um determinado tipo de demanda, um determinado tipo de modelo mental de uma sociedade que aceita, convive e não questiona. Folha - Essa escola educa? Rocha - Não. Ela escolariza. Uma coisa é falar em educação, outra é falar em escolarização. A maioria das pessoas que estão cometendo grandes crimes são pessoas escolarizadas. Então, que escola é essa? Para que ela serviu? Não ajudou nada, mas escolarizou. E essa escola continua sendo branca, cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada. Ela seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não educa. 

Folha - O que significa a escola ser branca? 
Rocha - Por exemplo, eu nunca tive aula sobre os reis do Congo, mas tinha aula sobre todos os Bourbons, reis europeus. 

Folha - E conformada? 
Rocha - A escola não permite inovação. Ela é reprodutora da mesmice. A escola formal não está só na forma. Ela está dentro da fôrma. O pior é quando ela está dentro do formol. É um cadáver. O conteúdo da escola está pronto e acabado. Os meninos que vão entrar na escola no ano que vem, independentemente de quem sejam, aprenderão as mesmas coisas, do mesmo jeito. Aprendem o que alguém determinou que tem que ser aprendido. 

Folha - O que está errado com o conteúdo? 
Rocha - Recentemente, uma menina de nove anos, lá em Curvelo, virou para mim e disse: “Tião, vou ter prova e esqueci o que é hectômetro”. Eu disse a ela que ninguém precisa saber o que é isso, que não se preocupasse, isso não cairia na prova. Perguntei se ela sabia o que era centímetro, metro, quilômetro. Ela sabia. “Pronto, tá bom demais, você vai viver a vida inteira mais 15 dias e não vai acontecer nada”, disse para ela. Passados uns dias: “Me ferrei. Caiu na prova e eu não sabia”. Peraí: criança de nove anos tem que saber isso? Isso é conhecimento morto. Mas se eu pergunto se eu posso ensinar outra coisa, não posso. O que posso é ensinar as mesmas coisas de um forma diferente. No conteúdo não pode mexer. O vestibular cobra. É um processo seletivo que vai determinando e excluindo, afunilando, dizendo que, para entrar aqui, precisa pensar desse jeito, nessa lógica. Do ponto de vista da escolarização, tá indo muito bem. Agora, se tá educando ou não, ninguém discute. Quando uma criança é entrevistada e diz que é de determinado projeto porque quer ser alguém na vida, já sei que ela foi pessimamente educada. Um menino que aos 12 anos acha que não é ninguém na vida não tem mais auto-estima. Ele não é ele. Ela vai ser. É sempre um projeto adiado para o futuro. 

Folha - Como deveria ser a educação? 
Rocha - Um projeto de vida, não de formação para o mercado. A lógica da vida não é ter um emprego. Será que é possível construir um processo de uma escola que incorpore valores dignos, que passe a perceber que a ciência precisa estar condicionada a esses valores, que a tecnologia precisa estar condicionada a esses valores, que elas não podem ser determinantes dos valores humanos? Ter analfabetos não pode ser um problema econômico, é um problema ético. A experiência que a gente vem desenvolvendo no CPCD é saber se é possível fazer educação de qualidade. Claro que é. Só que você tem que botar uma pergunta que a gente sempre faz. É o MDI: “de quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso”… O resto você completa com uma ação: educar, alfabetizar, diminuir a violência, gerar mais renda. Quando a gente começa a fazer isso, aparecem 70 sugestões para alfabetizar, por exemplo. Vamos tentando uma por uma. Funcionou? Não? Risca. E vamos para a próxima. Quando chega na última, já tem mais tantas outras. Você não esgota o seu potencial de soluções para as crianças aprenderem. 

Folha - Até onde vale criar soluções? 
Rocha - Na educação, qual é a melhor pedagogia? É aquela que leva as pessoas a aprender. Na escolarização, a melhor pedagogia é aquela que dá mais sentido para quem a aplica. O CPCD foi secretário da Educação de Araçuaí. Lá tinha um problema: os meninos demoravam duas horas no ônibus. O que a gente fez? Colocou educadores no ônibus. Qualquer secretaria de Educação pode fazer. É só sair da caixa. Uma outra questão é o acesso aos livros. Há muitos anos, acompanhei a trajetória de dez crianças em Ouro Preto num período de seis, sete anos. Como eu sei se um aluno é da primeira, da segunda, da terceira série? É pelo tamanho da pasta. No primeiro ano, traz até uma mala. Leva tudo. Depois, vai deixando. No ginásio [quinta a oitava série], eles não levam quase mais nada. No colegial, às vezes leva só uma canetinha. Eu me perguntei se os livros perderam o encantamento ou se foi a escola que não soube mantê-los encantados. Juntei um monte de livros em baixo da árvore e mandava a meninada ir lendo. Em volta, deixava montinhos de sucata e escrevia uma placa: música, teatro, artes plásticas, literatura. Tudo que o menino lesse, tinha que ir numa direção e fazer música, teatrinho etc. É um jogo. Ler e transformar, do seu jeito. Eles ficavam lá a tarde inteira. Vinha gente de longe. Agora, por que será que esses meninos nunca tinham entrado numa biblioteca da escola? Porque ele não tinha prazer em entrar na biblioteca. Quando ia ler um livro, tinha que dissecar a obra, classificar o texto, responder a dez perguntas sobre aquele negócio. Em baixo da árvore, ele não tinha que responder a pergunta nenhuma. Era prazer, e não dever. Os livros não perderam o encantamento, portanto. Eu nunca li e detesto Machado de Assis. Por quê? Porque tive que fazer anatomia do livro. Achava um saco. Até hoje não consegui romper com isso. 

Folha - Como enfrentar a falta de leitura? 
Rocha - Faz chover livro na cabeça dos meninos. De todo jeito. Bornal de livros, algibeira de leitura, folia do livro, banco de livros, livro no ponto de ônibus. É igual propaganda. Como você quer que o cara não tome Coca-Cola? Vamos botar esse apelo para o livro. A gente foi tirando os meninos do estado de UTI. Vale tudo. É ético? É. Então, vale. Se nunca foi feito, a gente faz. Se errar, não tem problema. Temos que aprender. 

Folha - Como você mexe no conteúdo? Tem um conteúdo básico? 
Rocha - Claro. Tem que ter alguma coisa para começar. Precisa aprender os códigos de leitura, a a raciocinar e fazer cálculo, as quatro operações básicas. Mas não precisa saber o que é hectômetro. 

Folha - Como diversificar? Ou por que diversificar? 
Rocha - Há uns 20 anos, eu trabalhava bem no sertão. Tinha um projeto do governo para combater a doença de chagas na região. Parecia muito bom, as casas de adobe seriam substituídas por casas de cimento com condições de pagamento bem favoráveis. Mas não houve adesão dos moradores. O que os engenheiros não percebiam é que as casas pareciam um forno de tão quente. O pessoal do projeto dizia: “É uma questão de adaptação”. Eu respondia: “Não começa, não. A casa de adobe resolve muito bem a questão térmica. Por que não fazem casa de qualidade com adobe naquele sertão?”. Eles disseram que não sabiam fazer, que não aprendiam isso na faculdade de engenharia. Fiquei imaginando: eles não foram formados para fazer casas dignas para a população. Querem fazer em São Paulo e no sertão uma casa do mesmo tipo. Que lógica é essa? É a lógica do modelão. Hoje, entrou na moda fazer casa de adobe, é ecológico. Engraçado. Antes, as pessoas faziam casa assim. Aí vieram, cortaram a tradição, impuseram o modelão e, agora, querem voltar ao que se fazia antes, mas travestido de conversa nova. 

Folha - Você é contra todo tipo de forma universalizante? 

Rocha - Como padrão único, claro. Folha - Você é a favor de uma transformação constante? Rocha - Da diversidade permanente. Folha - De uma pedagogia específica para cada pessoa? Rocha - Não. O que não pode é aprender uma única coisa, todo mundo igual. Mas não é “cada um faz o que quer”. O que não pode é dar pesos desiguais, ou seja, negar ou excluir coisas em função de critérios que são absolutamente ideológicos. É possível criar uma sociedade polivalente, diversificada? É, porque não foi feito ainda. Se ninguém fez, é possível. Isso é o que eu chamo de utopia. Utopia para mim não é um sonho impossível. É um não-feito-ainda, algo que nunca ninguém fez. É possível aprender brincando? A escola tem que ser o serviço militar obrigatório aos sete anos ou pode ser prazerosa? Aí eu coloco um indicador: a escola ideal deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos sábados, domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário. Os meninos estão no século 21 e a escola está Idade Média. A escola é a única instituição contemporânea que tem servos, tem serventes, pessoas que estão lá para nos servir. Nem em banco tem isso, lá são “auxiliares de serviços gerais”. Quando eu trabalhava na Universidade Federal de Outro Preto, por acaso eu virei pró-reitor. Acabei indo a uma reunião de pró-reitores com o secretário da Educação. Aquele discurso enfadonho estava me enchendo o saco, até que eu disse: “Nesse país, uma escola nunca teve crise de aprendizagem: a escola de samba. Uma assessora do secretário disse que aquilo era inadmissível e perguntou se eu achava que a escola pública tinha que ser “aquela bagunça”. Eu respondi: “Tô vendo que a sra. não entende nada de escola de samba. Na escola tem disciplinador, não tem? Pois na escola de samba tem diretor de harmonia”. Entende? Uma coisa é cuidar da disciplina, outra coisa é cuidar da harmonia. 

Folha - Como nasce uma nova forma de ensinar? 
Rocha - Ou da dificuldade ou da pergunta. Somos movidos por uma pergunta, que vira um desafio, que vira uma encrenca. É possível educar debaixo do pé de manga? É possível criar agentes comunitários de educação? Vamos ficar pensando ou vamos aprender fazendo? Vamos aprender fazendo. A primeira coisa que a gente fez foram os “Não Objetivos Educacionais”. Porque formular um objetivo é muito simples: basta colocar um verbo na forma infinitiva e depois encher de lingüiça. O nosso verbo é o “paulofreirar”, que só se conjuga no presente do indicativo: eu “paulofreiro”, tu “paulofreiras” e por aí vai. Não existe “paulofreiraria”, “paulofreirarei”. Ou faz agora ou sai da moita. Ação e reflexão, agora. As respostas vão sendo testadas e viram novas metodologias, pedagogias. Assim surgiu a pedagogia da roda, por exemplo, como um jeito de combater a evasão dos meninos. Não podemos perder os alunos, precisamos mantê-los interessados. 

Folha - Seus métodos são tão abertos a ponto de aceitar que uma criança queira aprender na escola formal? Ou você quer acabar com a escola? 

Rocha - Eu não quero acabar com a escola. Ela é muito mais importante do que parece. Ela tá longe de esgotar seu repertório, não usou nem 10% das possibilidades. Mas, para isso, ela precisa ter a ousadia de experimentar. É uma lástima dar às crianças só o que a escola formal oferece. É muito pouco. As pessoas querem tirar os meninos da rua e levar para a escola –só se for para prender, porque para aprender não serve. É muito chato. Por que, em vez de tirar da rua, não mudamos a rua? Lugar de criança é na escola, na rua, em todos os espaços. Todos os espaços podem ser de aprendizado. Há experiências de cidades educativas muito legais. Folha - Como é sua relação com os governos? Rocha - Eu não vejo muita diferença. Todos eles estão dentro da mesma caixa, só muda a cor. A escola que tem agora não é muito diferente da de oito anos ou 20 anos atrás. Vai só pintando a fachada. A lógica, o processo, a metodologia muda muito pouco, no geral. A gente não consegue estabelecer alianças com os governos porque incomoda pensar fora da caixa. Se incomoda, são refratários. Então a gente vem aprendendo a fazer política pública não-governamental.

domingo, 27 de abril de 2008

Obrigada, professor!

Foram poucas as palavras. Entre tristeza e perplexidade, eu não pude decidir o que faria, como faria. Professora do Centro de Educação, eu esqueci-me de qualquer condição institucional, profissional e fui, acima de tudo, uma aluna que acabara de perder seu professor querido.
É, talvez, um elemento significativo dos dias que se seguiram à partida do professor João Francisco que aponta na direção de como o vejo, meu professor, e como me, vejo, professora, a partir das relações humanas e humanizantes com mestres de grandeza e beleza como a de João... Cada vez que uma aluna ou um aluno meu (e muitos não tiveram a oportunidade de ser alunos de João Francisco) me cumprimentava, num abraço (apertadíssimo!) eu dizia apenas: "o meu professor querido". Os alunos e alunas sorriam/choravam solidários e exclamavam: "nós sabemos!"... Eles e elas sabem! Aliás, vocês (pois é a vocês, que partilham comigo as salas de aula, que este diálogo se dirige) sabem.
Hoje, um mês depois, não me sinto muito longe da possibilidade de ser visitada pelo choro ao falar dele, mas preciso fazê-lo.
É preciso fazer saber que ele foi um grande professor porque foi, antes de tudo, um ser humano bonito. Pra lá de bonito! E o seu compromisso com a Educação era, sobretudo, um compromisso com a boniteza do Mundo. Boniteza que era estética e ética. Boniteza exigente e profunda que clamava por justiça e emancipação para os esfarrapados do Mundo.
A primeira aula, no Programa de Pós-Graduação em Educação (da UFPE), me causou uma impressão confusa e inquieta: um professor entra na sala com um volume imenso de livros e, após nos cumprimentar, pede que nos apresentemos dizendo que éramos os que "restamos" após o processo de seleção ao Mestrado. Apresenta os livros um a um (lançando aqui e acolá provocações que depois eu saberia eram tão características de seu comportamento) e, em seguida, começa a falar de suas compreensões e inquietações em torno da Educação. Fiquei intrigada com as provocações e a ironia e, ao mesmo tempo, fascinada com a inteligência.
As aulas seguintes confirmaram o brilhantismo de uma inteligência que estava a serviço de desinstalar-nos. Entendi a presença das provocações. Entendi a presença da ironia. João tinha como caminho metodológico a inquietação porque para além do entendimento queria que consolidássemos o comprometimento. Comprometer-se com a Educação era imprescindível. O comprometimento com a Educação traduzia um comprometimento com um projeto de Mundo. Projeto de Mundo onde a inclusão de todos e todas não fosse discurso vazio e evasivo. Por isso, João Francisco de Souza não fala em "exclusão", mas em "inclusão perversa". Todos estão inseridos no mundo-social, o problema está em como estão inseridos. A humanização dos seres humanos, sendo a finalidade da Educação, exige o engajamento numa luta efetivamente política para construirmos novas possibilidades de con-viver em sociedade.
Ao falar de nossas pesquisas, sempre citava Boaventura e dizia: "a questão é construirmos um conhecimento prudente por uma vida decente". A decência não estava ligada a uma moral universal, mas a dignidade sem a qual o mundo é sempre menos humano. A humanidade de todos os seres humanos, pertencentes a todas as sociedades, todas as culturas, de todas as idades, de todas as etnias, de todos os credos, constitua para ele uma condição para as possibilidades de Vida no mundo. Vida com "v" maiúsculo. As competitividades, as opressões, a lógica de Mercado, havia pervertido relações e subjetividades e, neste contexto, a tarefa da Educação era a de romper com a lógica desumanizante. Educação em todas as instâncias, formais, não-formais, informais. Ao usar o termo "colonização" para referir-se a como a instituição escolar centralizava as atenções e projetos em torno dos papéis da Educação, João atrelava Educação e Poder, ao mesmo tempo em que denunciava uma apropriação da Escola por certos projetos de Poder.
Foi um tempo rico e inquietante. As aulas com o professor João Francisco mobilizavam-me o pensamento. Eu me fazia cada vez mais perguntas...
Tornei-me leitora de seus livros embora, um dia, ao ler um texto meu, ele tenha reclamado da ausência de citações aos seus livros - fato muito representativo de nossa convivência, cheia de admiração, respeito e liberdade de falar o que se quisesse. Ao tornar-me professora (substituta) naquele mesmo Centro de Educação, inseri textos de SOUZA nos referenciais bibliográficos... Mais uma vez, num encontro entre professores, à porta de uma sala, ao entrar para sua aula de Sociologia da Educação após a minha aula de Filosofia da Educação, João brincou: "professora, estás usando SOUZA como referência?", ao que respondi: "estou e, inclusive, preciso lembrar de apagar os registros no quadro para você não perceber se eu estiver usando as suas idéias equivocadamente!". João riu e disse: "fico muito contente porque assim, eu não estarei falando sozinho".
No semestre seguinte a este encontro, João interrompe uma aula minha para trazer-me um livro recém-publicado, "Filosofia da Educação: quê?", e alguns exemplares de um número da Revista Fênix onde ele havia proposto a publicação de um artigo meu (sem me avisar antes!). Presenteou-me com o livro, as revistas e, sobretudo, com suas palavras, cheias de carinho e respeito, ao falar para a turma de graduandos de Pedagogia que eu havia sacudido nas idéias dele a vontade de retomar um projeto antigo de reunir textos que discutissem a Filosofia da Educação como um saber necessário á práxis educacional.
Este livro é um livro bom danado, que eu gosto de utilizar como um caminho de inquietação e mobilização do debate e da reflexão, em sala de aula, sobre o quefazer da Educação. É o segundo maior presente que João Francisco me deu... O primeiro foi ter sido sua aluna, foi ter tido a oportunidade de interpelar nos corredores um autor que eu leio com curiosidade e inquietação.
A construção de uma nova Educação (no século XXI) pede que saibamos resgatar a generosa e respeitosa gratidão por aqueles e aquelas que contribuiram com o nosso processo contínuo de Educação. Perder de vista os traços dos educadores e mestres que tivemos em nossa trajetória é fazer do conhecimento construído uma conquista arrogante e individualista... Por isso, não quero esquecer quem contribuiu para minha educação, minha Humanização e para a consolidação de compromissos na professora que sou.
João Francisco é uma marca fortíssima na esperança, luta e teimosia do nosso fazer maior, a Educação.
Luciana Araújo Cavalcanti
Recife, Várzea do Capibaribe, 27 de Abril de 2008.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

PDE - em debate


OPINIÃO: Segunda-Feira, 31 de Dezembro de 2007

O MEC não pára de errar

Paulo Ghiraldelli Jr.


O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) não é propriamente um plano, é uma colcha de retalhos. E exagerado nas ambições. É um pulverizador de recursos e, ao mesmo tempo, seus objetivos são vagos e mal redigidos. Sua "pedagogia" é a proposta estranha, vinda do grupo do Todos pela Educação, que tem por base a idéia do "faça você mesmo". Tudo é jogado nas costas da tal de "comunidade". Ninguém mais poderia ir para o trabalho caso essa idéia vingasse, pois todos nós teríamos de ir para a escola para ajudá-la a funcionar. Essa ficção chamada "comunidade", e não mais o Estado, é vista como a real responsável pela educação pública.É claro que há coisas boas no PDE. A intenção de articular as ações do governo federal com os municípios é interessante e correta. Todavia, do modo como isso vem sendo feito, há mais erros do que acertos até nas particularidades boas do plano.Uma das partes que o PDE quer resolver, mas não conseguirá, é a da formação de professores do ensino básico (fundamental e médio). Temos carência de professores no Brasil. Ao mesmo tempo, os que estão nas salas de aula não estão conseguindo dar conta do recado, pois temos claro que nossos alunos são qualitativamente inferiores ao que poderíamos esperar de um aluno brasileiro.Há erros básicos no plano quanto à formação de professores, e isto aparece no Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e em outras ações governamentais. Vejamos.O Reuni amplia vagas de licenciaturas nas universidades federais. Além disso, o problema relativo aos professores do ensino básico é equacionado por duas medidas: bolsas para professores universitários para colaborarem na melhoria da formação dos professores do ensino básico e treinamento e capacitação dos professores via Universidade Aberta do Brasil (UAB), que é um sistema de ensino a distância. Essas três medidas funcionarão? Ajudarão em algo? Não! Explico.Essas medidas seriam interessantes para um país onde os problemas a respeito da formação dos professores fossem corriqueiros, defeitos de um sistema que, no todo, estaria funcionando. Não é o caso do Brasil. O que temos não está funcionando. Portanto, ampliá-lo é dinheiro jogado fora. Eis aqui (no espaço de que posso dispor) os pontos críticos:A licenciatura no Brasil de hoje se resume ao sistema de grade curricular, que é o de "núcleo de conteúdo mais disciplinas pedagógicas". O estudante universitário faz disciplinas básicas e, depois, mais quatro ditas pedagógicas. Em geral, são as seguintes (os nomes podem variar um pouco): Prática de Ensino (estágio), Psicologia da Educação, Didática e Legislação. Estamos nisso há anos e todos os estudantes dizem que não funciona. Isso não forma o professor. Ampliar esse erro, que vem desde os tempos da reforma universitária da ditadura militar, é uma enorme bobagem.O Ministério da Educação (MEC) diz que vai incentivar um programa de bolsas de pesquisa para alunos da universidade que fazem as licenciaturas - a reativação do Programa de Educação Tutorial (PET). Ora, todos sabemos que isso irá terminar como algo parecido com as cópias de "trabalhos de final de curso" (TGIs ou TCCs) que infestam a universidade brasileira estatal ou particular. A licenciatura no Brasil precisa ser inteiramente reformulada, do modo como está não proporciona bons frutos, e tudo o que se faz nela como adendo para melhorar é encaminhado de maneira tosca, pois a estrutura em que esses cursos andam é que está viciada e carcomida.Colocar os professores universitários (como se eles fossem bem formados) para educar os professores do ensino básico é algo bem questionável. O estudante não se formou professor de modo satisfatório, e foi fruto de trabalho dos professores que estão na universidade. Agora, depois de formados, vão voltar a ter aulas com os mesmos que não os formaram bem? Ora, se os professores universitários, quando estavam com os alunos em sala e, então, ganharam seus salários para ensinar, não os ensinaram, qual a razão de acreditar que depois, com remuneração feita por bolsa, vão conseguir fazer o que não fizeram em condições normais? Não tem lógica.Tentar tapar o sol com a peneira não funciona, mas é isso que a UAB faz. O professor do ensino básico que procura melhorar não pode fazer cursos trabalhando e sem apoio presencial. Acreditar que alguém que está no ensino básico, com os salários defasados como estão, vai melhorar sua capacidade intelectual e pedagógica pelo contato com um sistema virtual de ensino, que dificilmente pode chegar com eficácia aos lugares mais carentes, não é algo que se deva fazer.Essas medidas todas não estão articuladas com um estudo da geografia do professorado brasileiro. Há cidades onde há muitos professores desempregados. Bons professores. Eles não voltam ao magistério por causa dos salários. Ou fazem do magistério um bico, exatamente porque gostam de lecionar, mas não podem viver disso integralmente. E há cidades onde realmente faltam professores. Sem uma política que leve em conta mecanismos de realocação de mão-de-obra para o ensino básico, qualquer outra medida se tornará inócua.Por fim, a questão da Escola Normal de nível médio. O Brasil não pode ficar restrito aos cursos de Pedagogia para formar professores. Esses cursos proliferaram demais e são fracos - em todos os sentidos. Faz-se necessária a reconstrução do sistema da Escola Normal de nível médio, mas agora em articulação com o ensino superior, de modo a refazer (e ampliar) a experiência que tivemos em São Paulo com o programa dos Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (Cefam) - e aí, sim, a política de bolsas, em que tanto o governo Lula insiste, funcionaria.

Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo
Site: www.ghiraldelli.pro.br