domingo, 27 de abril de 2008

Obrigada, professor!

Foram poucas as palavras. Entre tristeza e perplexidade, eu não pude decidir o que faria, como faria. Professora do Centro de Educação, eu esqueci-me de qualquer condição institucional, profissional e fui, acima de tudo, uma aluna que acabara de perder seu professor querido.
É, talvez, um elemento significativo dos dias que se seguiram à partida do professor João Francisco que aponta na direção de como o vejo, meu professor, e como me, vejo, professora, a partir das relações humanas e humanizantes com mestres de grandeza e beleza como a de João... Cada vez que uma aluna ou um aluno meu (e muitos não tiveram a oportunidade de ser alunos de João Francisco) me cumprimentava, num abraço (apertadíssimo!) eu dizia apenas: "o meu professor querido". Os alunos e alunas sorriam/choravam solidários e exclamavam: "nós sabemos!"... Eles e elas sabem! Aliás, vocês (pois é a vocês, que partilham comigo as salas de aula, que este diálogo se dirige) sabem.
Hoje, um mês depois, não me sinto muito longe da possibilidade de ser visitada pelo choro ao falar dele, mas preciso fazê-lo.
É preciso fazer saber que ele foi um grande professor porque foi, antes de tudo, um ser humano bonito. Pra lá de bonito! E o seu compromisso com a Educação era, sobretudo, um compromisso com a boniteza do Mundo. Boniteza que era estética e ética. Boniteza exigente e profunda que clamava por justiça e emancipação para os esfarrapados do Mundo.
A primeira aula, no Programa de Pós-Graduação em Educação (da UFPE), me causou uma impressão confusa e inquieta: um professor entra na sala com um volume imenso de livros e, após nos cumprimentar, pede que nos apresentemos dizendo que éramos os que "restamos" após o processo de seleção ao Mestrado. Apresenta os livros um a um (lançando aqui e acolá provocações que depois eu saberia eram tão características de seu comportamento) e, em seguida, começa a falar de suas compreensões e inquietações em torno da Educação. Fiquei intrigada com as provocações e a ironia e, ao mesmo tempo, fascinada com a inteligência.
As aulas seguintes confirmaram o brilhantismo de uma inteligência que estava a serviço de desinstalar-nos. Entendi a presença das provocações. Entendi a presença da ironia. João tinha como caminho metodológico a inquietação porque para além do entendimento queria que consolidássemos o comprometimento. Comprometer-se com a Educação era imprescindível. O comprometimento com a Educação traduzia um comprometimento com um projeto de Mundo. Projeto de Mundo onde a inclusão de todos e todas não fosse discurso vazio e evasivo. Por isso, João Francisco de Souza não fala em "exclusão", mas em "inclusão perversa". Todos estão inseridos no mundo-social, o problema está em como estão inseridos. A humanização dos seres humanos, sendo a finalidade da Educação, exige o engajamento numa luta efetivamente política para construirmos novas possibilidades de con-viver em sociedade.
Ao falar de nossas pesquisas, sempre citava Boaventura e dizia: "a questão é construirmos um conhecimento prudente por uma vida decente". A decência não estava ligada a uma moral universal, mas a dignidade sem a qual o mundo é sempre menos humano. A humanidade de todos os seres humanos, pertencentes a todas as sociedades, todas as culturas, de todas as idades, de todas as etnias, de todos os credos, constitua para ele uma condição para as possibilidades de Vida no mundo. Vida com "v" maiúsculo. As competitividades, as opressões, a lógica de Mercado, havia pervertido relações e subjetividades e, neste contexto, a tarefa da Educação era a de romper com a lógica desumanizante. Educação em todas as instâncias, formais, não-formais, informais. Ao usar o termo "colonização" para referir-se a como a instituição escolar centralizava as atenções e projetos em torno dos papéis da Educação, João atrelava Educação e Poder, ao mesmo tempo em que denunciava uma apropriação da Escola por certos projetos de Poder.
Foi um tempo rico e inquietante. As aulas com o professor João Francisco mobilizavam-me o pensamento. Eu me fazia cada vez mais perguntas...
Tornei-me leitora de seus livros embora, um dia, ao ler um texto meu, ele tenha reclamado da ausência de citações aos seus livros - fato muito representativo de nossa convivência, cheia de admiração, respeito e liberdade de falar o que se quisesse. Ao tornar-me professora (substituta) naquele mesmo Centro de Educação, inseri textos de SOUZA nos referenciais bibliográficos... Mais uma vez, num encontro entre professores, à porta de uma sala, ao entrar para sua aula de Sociologia da Educação após a minha aula de Filosofia da Educação, João brincou: "professora, estás usando SOUZA como referência?", ao que respondi: "estou e, inclusive, preciso lembrar de apagar os registros no quadro para você não perceber se eu estiver usando as suas idéias equivocadamente!". João riu e disse: "fico muito contente porque assim, eu não estarei falando sozinho".
No semestre seguinte a este encontro, João interrompe uma aula minha para trazer-me um livro recém-publicado, "Filosofia da Educação: quê?", e alguns exemplares de um número da Revista Fênix onde ele havia proposto a publicação de um artigo meu (sem me avisar antes!). Presenteou-me com o livro, as revistas e, sobretudo, com suas palavras, cheias de carinho e respeito, ao falar para a turma de graduandos de Pedagogia que eu havia sacudido nas idéias dele a vontade de retomar um projeto antigo de reunir textos que discutissem a Filosofia da Educação como um saber necessário á práxis educacional.
Este livro é um livro bom danado, que eu gosto de utilizar como um caminho de inquietação e mobilização do debate e da reflexão, em sala de aula, sobre o quefazer da Educação. É o segundo maior presente que João Francisco me deu... O primeiro foi ter sido sua aluna, foi ter tido a oportunidade de interpelar nos corredores um autor que eu leio com curiosidade e inquietação.
A construção de uma nova Educação (no século XXI) pede que saibamos resgatar a generosa e respeitosa gratidão por aqueles e aquelas que contribuiram com o nosso processo contínuo de Educação. Perder de vista os traços dos educadores e mestres que tivemos em nossa trajetória é fazer do conhecimento construído uma conquista arrogante e individualista... Por isso, não quero esquecer quem contribuiu para minha educação, minha Humanização e para a consolidação de compromissos na professora que sou.
João Francisco é uma marca fortíssima na esperança, luta e teimosia do nosso fazer maior, a Educação.
Luciana Araújo Cavalcanti
Recife, Várzea do Capibaribe, 27 de Abril de 2008.

Nenhum comentário: